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Arte e o descaso


Os dias de muro cinza e lixo se acumulando na rua ficaram para trás

“E aí, Guga, tá importante! Dando entrevista!”, provoca um velho conhecido do grafiteiro-agitador cultural-músico-compositor-líder de banda gospel-cozinheiro Jefferson Juliano Gomes, o Guga.
“E isso é bom?, responde sem empolgação. “Opa, não acha?”, continua o amigo. “Sei lá, você me conhece, sou ogro, não sei nada dessas coisas não”, rebate, sério.
A suposta ”ogrice” permaneceu adormecida naquela manhã de junho – Dia Mundial do Meio Ambiente. Guga, 34 anos, era só sorriso e gentileza. Comandou com doçura e alegria o evento de grafitagem que, das 9 da manhã ao final da tarde, movimentou a Rua Císper em Ermelino Matarazzo, zona leste de São Paulo.
“Vamos grafitar contra o lixo que se espalha nesse muro aí”, explica o líder do Coletivo Cultural Cenário Urbano, grupo com expressiva atuação nas periferias da cidade, empenhado em mesclar arte com educação ambiental e responsável pela iniciativa.


Guga, presidente do Coletivo Cultural Cenário Urbano


O muro rodeia os fundos da fábrica de vidros Císper. Com cerca de um quilômetro e uma ameaçadora cerca farpada no alto, é velho conhecido de quem mora no pedaço. “Faz tempo que virou depósito de lixo”, conta Lindalva dos Santos Silva, dona de um bar com vista para o paredão. Trabalhando junto com o marido, Manuel, ela diz que já viu “tudo quanto é coisa encostada ali”: entulho, sofá, guarda-roupa, peixe podre e restos de comida. “Gente desmonta a casa e traz o lixo e a bagunça pra cá”, reclama.
“Caminhões, kombis, vans, caçambas: a sujeira vem de todo lugar”, diz Fernando Elizario, também vizinho. “As pessoas fizeram daqui um lixão mesmo”, explica. “Ponto viciado”, na fala do pessoal do coletivo – um lugar para o descarte irregular de todo tipo de rejeito.
“E os lagartos, os ratos que aparecem?”, conta outro morador, o pedreiro Luiz Leite Sobrinho. “Muita sujeira e cheiro ruim sim, mas agora parece que o visual vai mudar”, afirma a esperançosa Edna Alves, proprietária de um salão de beleza em rua próxima ao paredão.
“Para piorar, muita gente colocava fogo no lixo, completa a balconista Valéria Gomes. O muro ficou todo chamuscado e, uma vez, o fogo pegou nas árvores da fábrica, foi muito sério.”
O mais grave é que o lixo indiretamente também provocou a morte de dois moradores do bairro, e ainda deixou outro completamente desnorteado e deprimido. Quem conta a história com indignação é Márcia Alves Pereira, liderança do bairro oficialmente conhecido como Jardim Piraquara. “O lixo não ficava só na calçada, que é apertada. Ia para o meio da rua e as pessoas tinham de dividir o espaço com os carros”, explica. “A rua, além de estreita, é uma descida. E o pessoal vem lá de cima correndo”.




(clique nas fotos para ampliar)Dois moradores foram atropelados e mortos na Rua Císper. Num dos casos, uma senhora foi atingida por um rapaz que era seu vizinho. “O motorista enlouqueceu depois disso. Nunca se recuperou por ter matado a amiga”, afirma Márcia.
Naquele domingo, ela celebrava a iniciativa do grafite por sua beleza, mas principalmente pelo o que o pessoal do coletivo estava trazendo para a população do bairro – autoestima, sensação de pertencimento e de zelo pelo lugar.
“Você pensa que o pessoal da fábrica se importava com o lixo aqui? Nada. E para essa grafitagem eles doaram só algumas latas de tinta”, diz Márcia. Quem patrocina o projeto e dá força para a iniciativa é o Consórcio Soma, empresa responsável pela limpeza urbana nas regiões leste e sul da cidade.
No rol das mágoas, Márcia também fez questão de lembrar que o campus leste da Universidade de São Paulo (USP), instalado bem próximo ao Jardim Piraquara, nunca olhou para a comunidade vizinha. “Eles ficam distantes, não se preocupam com o que se passa por aqui. A mesma coisa acontece com a Císper, que na verdade agora tem outro nome que a gente nem consegue falar”, queixa-se, referindo-se à empresa americana Owens Illinois, atual proprietária da fábrica.




Leliana Pereira (esquerda, de preto) e Liliane Silva, grafiteiras conhecidas como "As Libertas", deram o toque feminista ao evento @Marcia Minillo
Leliana (esquerda) e Liliane, grafiteiras conhecidas como “As Libertas”, deram o toque feminista ao evento

“Só posso dizer uma coisa pra você”, continua Márcia. ”Esse trabalho que o Guga está fazendo aqui é mágico. Veja a alegria das pessoas. Antes da grafitagem, ele veio aqui com o grupo, explicou para os moradores o que iria acontecer, falou do problema do lixo, conscientizou todo mundo para tomar conta do pedaço. É isso que tem de ser feito. Os moradores precisam sentir que o lugar é de cada um, para poderem cuidar dele.”
No coletivo, todos trabalham como voluntários. Ao lado de Guga na liderança do grupo está André da Silva França, o André Hip Hop, da banda André Paz Racial. “Com o grafite, as comunidades estão revendo o preconceito que existe com esses artistas. Tem gente que acha que grafiteiro é tudo vagabundo, drogado.”
Ozeas Duarte, o Ozi, integrou o mutirão com entusiasmo. “Aprendi a grafitar com o Alex Vallauri, no fim dos anos 70. Sou da periferia e sei como é importante valorizar essa região. Essa galera do Coletivo faz um trabalho lindo.”
Leliana Pereira e Liliane Silva aproveitaram o momento para mostrar por que se intitulam As Libertas. “Nossa arte é para libertar a mulher de imposições inaceitáveis. Queremos mostrar que grafiteiro não é maloqueiro e que mulher também grafita”, disse Liliane.


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O agito na rua e no entorno crescia na medida da evolução dos desenhos. Além dos grafiteiros, Guga e sua trupe levaram trilha sonora com muito hip hop; pipoca e algodão doce. Para os pequenos, cama elástica e brinquedo inflável. Teve ainda quem cuidou dos cabelos e ofereceu dreadlocks coloridíssimos, contadores de histórias para a meninada e distribuição de camisinhas e informação sobre higiene bucal. Tudo patrocinado pela Soma, com apoio da subprefeitura de Ermelino Matarazzo.
Moradores mais tímidos foram, aos poucos, abrindo seus portões e tomando as ruas, para assistir à transformação. Alguns, mais entusiasmados, pediram para os grafiteiros pintaram os muros de suas casas também.



Trabalho uniu artistas de várias gerações e estilos @Marcia Minillo
Trabalho uniu artistas de várias gerações e eA satisfação de Guga se via de longe: subiu e desceu a rua diversas vezes puxando um carrinho de mão e distribuindo água gelada para os incansáveis grafiteiros – 370 ao todo, nas contas do coletivo. Para cada um fazia uma graça, dava uma palavra de incentivo.

O observador atento dessa festa não deixou de reparar, com certeza, na mistura de artistas, de várias gerações e estilos, que, juntos, revestiram o cinza da Rua Císper, deixando um pouco da sua arte carimbada por ali.
Essa festa tão bonita, segundo a subprefeitura, terá continuidade com um projeto de Rua Aberta no local: aos domingos, os carros estarão proibidos de circular por lá. Espera-se que os dias de muro cinza, mau cheiro e pedestres acuados pelo lixo tenham ficado para trás. “Não tem dinheiro que pague saber que o nosso coletivo ajudou nessa conquista”, diz Guga, o ogro gente boa da zona leste.
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Reportagem publicada originalmente na revista Carta Capital.

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